Quando uma mulher gigante pede desculpas por existir
Sandra é uma mulher de 38 anos, muito bonita, culta, carismática, inteligente e extremamente gentil, amorosa e espiritualizada. É o tipo de mulher que nunca passa despercebida por onde anda.
Ela é tão culta que eu a chamo carinhosamente de “enciclopédia”. Contudo, no campo das relações amorosas, ela sempre atraiu parceiros indisponíveis e abusiv0s. Essa mulher cheia de atributos coleciona memórias traumáticas envolvendo ex relacionamentos. Em troca das suas doações abundantes, sempre recebeu muitas decepções.
Nos bastidores das escolhas amorosas da Sandra, há um profundo sentimento de não merecimento. Há um “inquilino” habitando o seu inconsciente que norteia as escolhas de seus parceiros amorosos. Para contextualizar, trago um pouco sobre a existência dessa mulher: a mãe de Sandra engravidou aos 15 anos, e quando foi dar a notícia da gravidez ao namorado, ele disse que não queria ter mais filhos. Ele aproveitou o momento para trazer outras revelações: que era casado e que tinha filhos em outra cidade. Ele abandonou Sandra e foi embora. Para piorar, a jovem grávida foi expulsa de casa pelo pai. Ela passou muita humilhação nas ruas, inclusive, fome.
Totalmente desamparada, e com o emocional destroçado ela foi à Capital trabalhar como doméstica. Tempos depois, deu à luz. Sandra desde que se lembra entende por gente, sempre ouviu, da mãe, frases do tipo: “você devia me dar mais valor, pois eu sofri muito para te criar”, “eu parei a minha vida e os meus sonhos para cuidar de você”, “eu sofri muito por sua causa”. Quando Sandra entrou na puberdade, percebia que a mãe tinha pressa para que ela arrumasse um namorado para se casar e, assim, “se livrar” daquela responsabilidade.
Sandra sempre carregou uma intensa culpa por existir. Ela sempre se sentiu responsável por tudo o que a mãe sofreu envolvendo a gravidez e os desafios de criá-la numa realidade permeada por desamparo, humilhação e escassez. Além de tudo, Sandra presenciava a mãe sendo maltratada pelo padrasto, num casamento totalmente abusivo.
Numa tentativa de compensação inconsciente, Sandra passou a se sentir responsável pela mãe e pelos irmãos. Carregando culpa por existir e por “estragar” a vida da sua genitora, ela saiu da condição de filha e passou a se comportar como mãe da própria mãe, que ainda é muito jovem. Fica claro o estabelecimento de um acordo sistêmico disfuncional. É como se a mãe estivesse cobrando dela, depois de adulta, o “pagamento” retroativo por todos os perrengues que sofreu. E a Sandra, por sua vez, validou essa suposta “dívida”.
Sandra demorou para perceber a toxicidade do padrasto. Ela se referia a ele como um grande homem, pelo simples fato de ter “colocado comida na mesa” pra ela e sua mãe. Ela fechava os olhos para o fato de ter ferido tanto a própria mãe com agr3ssões físicas e psicológicas. Ela sentia uma gratidão desmedida por alguém que promovia um terr0r psicológico, com brigas, embriaguez e maus tratos durante a sua infância e adolescência.
Os relacionamentos indignos que Sandra viveu retratam uma lealdade à mãe. É como se ela pensasse: “não é justo que eu seja feliz, sendo que atrapalhei a felicidade da minha mãe”. Inconscientemente, ela se sentiria traindo a mãe, caso fosse feliz no amor (não é justo eu ser feliz depois de tudo o que causei à vida da minha mãe. Serei leal a ela, sendo infeliz).
Essa culpa por existir levou Sandra a adotar uma postura submissa nas relações como um todo. Mesmo quando se sentia desrespeitada, ela escolhia o silêncio. Ela, por muito tempo, chamava esse silêncio de educação, mas com a terapia em dia, passou a compreender que, na verdade, estava se curvando à seguinte crença: “já dei trabalho demais, não tenho direito de me defender”. Recentemente, Sandra começou a impor limites. Aos poucos, está se posicionando em situações de injustiça e falando “não”. Ela está indo na direção do seguinte entendimento: “eu mereço o melhor dessa vida. Eu não sou responsável pelas escolhas da minha mãe. Sou responsável pelas minhas próprias escolhas. Eu mereço o melhor dessa vida. Eu não preciso pedir desculpas por existir”.
Sandra é uma mulher gigante que ainda não se deu conta da sua magnitude. Mas é questão de tempo para essa potência desabrochar. Ela já está dando os primeiros passos. Caminho sem volta. Texto de Ivonete Rosa